DIA INTERNACIONAL DA MULHER
Querida
Dna. Mafalda.
Quando
nos conhecemos, há cerca de quinze anos atrás, confesso-lhe que eu era muito
ignorante sobre as questões das pessoas com deficiência.
Naquela
época, durante o governo do prefeito Celso Daniel, em que juntos construíamos o
primeiro conselho municipal de pessoas com deficiência da Região do ABC, e
certamente um dos primeiros do Brasil, eu já tinha uma militância antiga e a
senhora também. Eu, coordenando o processo, representava o governo, a senhora,
sempre muito aguerrida, representava a sociedade civil.
Eu,
no entanto, via, ainda, a questão das pessoas com deficiência de uma maneira
muito limitada. O que me preocupava, sobretudo, era a acessibilidade
arquitetônica. Julgava que havendo rampas, elevadores, transporte adaptado e
outras coisas do tipo, tudo estaria resolvido para as pessoas com deficiência.
Meu Deus! Como meu modo de ver era pobre. Pensando que sabia muito, descobri
que sabia muito pouco.
Graças
à senhora e a muitas outras mães de pessoas com deficiência, sobretudo mães de
pessoas com deficiências severas e deficiências intelectuais, aprendi muito.
Tornei-me um pouco menos ignorante.
Por
ser uma pessoa com deficiência, já passei por inúmeras situações de preconceito
e de constrangimento. Sempre encarei esses momentos com altivez e, creio, com
sabedoria, nunca me deixo abater, ao contrário, fortaleço-me a cada obstáculo.
O
preconceito e o constrangimento se materializam de muitas formas: a falta de
uma rampa, o fato de não poder entrar em algum lugar onde preciso ou quero ir,
a falta de um banheiro acessível, e pior: um olhar de pena ou de dó, uma
palavra que se refira ao sofrimento da deficiência, quando na verdade o
sofrimento é o da exclusão.
Sei
muito bem que essas situações são também vividas por muitas outras pessoas com
deficiência, são também assim para muitas famílias e muitas mães de pessoas com
deficiência. E certamente o preconceito e o constrangimento maior pelos quais
passamos é o que eu chamo de menosprezo social, é como se nós fossemos menos,
como se valêssemos menos. E quanto mais acentuada é a deficiência menos
valorizados somos, quanto mais acentuada é a deficiência maior é o menosprezo e
maior é a carga que, sozinhas, as famílias e as pessoas com deficiência têm que
carregar.
Uma
coisa muito forte, que a senhora falou um dia, sobre sua filha, marcou-me muito
e sempre me mobilizou. A senhora disse: “Quando eu morrer a Luzia terá que
morrer também, pois não haverá ninguém para cuidar dela.”
A
senhora não sabe, mas agora não uso mais muletas, há uns quatro anos adotei
definitivamente a cadeira de rodas, uso na maior parte do tempo uma cadeira
motorizada e estou muito feliz com isso. Moro no Centro de São Paulo e vou a
muitos lugares de Metrô e ônibus. Tenho duas filhas, casei-me com uma mulher
linda, Roberta, que é mãe da Leona, a mais nova, de apenas dois meses. Levo
minha vida, quase que normalmente.
Mas,
conheço muitas mães como a senhora, que lutaram a vida toda por uma vida digna
para seus filhos e filhas com deficiências severas e que encontram sempre e
sempre obstáculos, sempre e sempre portas fechadas, sempre e sempre
incompreensão e nada se resolve, e nada mais podem esperar a não ser que seus
filhos acabem em algum asilo ou abrigo quando faltarem seus cuidados.
Há
alguns anos atrás, juntamente com uma amiga que tem uma deficiência física
severa e que estuda toda essa situação que leva muitas pessoas com deficiência
a viverem em abrigos, produzi um vídeo sobre o tema,
que lhe envio uma cópia agora. Para realizá-lo, graças a um financiamento da
Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, conheci várias instituições
e outras experiências de moradias para pessoas com deficiências severas e para
pessoas com sofrimento psíquico: moradias assistidas, casas-dia, residências
terapêuticas. Também estive em grandes e assustadoras instituições, onde
centenas de pessoas com deficiência passam toda a sua vida.
Instituições
com duzentas, trezentas, quinhentas pessoas com deficiência internadas, sem futuro,
sem passado, sem presente, abandonadas a uma rotina massacrante. Conheci uma
instituição que possui até um cemitério próprio, ou seja, as pessoas não saem
de lá nem mortas.
Vi
muitas famílias, mães, que mesmo amando seus entes queridos são obrigadas a
interná-los porque não têm como cuidar deles, mães sozinhas que precisam
trabalhar. Famílias muito pobres que moram em habitações que não oferecem
condições mínimas para o cuidado de uma pessoa com deficiência severa. Mas, vi
também trabalhos, chamados “de volta para
casa”, em que famílias, recebendo o apoio que precisam, voltam a acolher
seus parentes que estavam internados.
Vi
também residências dignas, com todo o apoio necessário para um número pequeno,
de quatro a dez pessoas, como as que foram criadas pela APAE de Bauru, a APAE
de Belo Horizonte. A Casa de David, com quase quatrocentos moradores, doze
moram em residências fora da instituição. É pouco, mas é uma iniciativa
interessante. Também conheci uma experiência muito boa realizada pela prefeitura
do Rio de Janeiro, entre outras.
A
partir daí começamos a trabalhar para que essas e outras experiências, tais como
os programas de apoio às famílias, as casas-dia e as residências inclusivas, se
tornem cada vez mais uma realidade em nosso dia a dia. Criamos, em 2004, o Fórum
de Residências Inclusivas que, durante vários anos, realizou dezenas de
reuniões com especialistas, familiares e gestores públicos. Escrevemos diversos
documentos, realizamos um seminário e conseguimos incidir em programas de governos.
A senhora deve ter visto o lançamento, pela presidenta Dilma, do Programa Viver
sem Limite. Pois é, nesse Programa, conseguimos fazer constar a implementação
de 200 Residências Inclusivas em várias regiões do Brasil.
Estamos
agora acompanhando e pressionando para que essa política saia do papel e que
seja de boa qualidade. Precisamos de muitas pessoas como a senhora para nos
ajudar nisso.
A
senhora deve conhecer a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência[i].
No seu artigo 19, do qual também envio uma cópia, a Convenção fala justamente
sobre isso: o direito à vida em comunidade, com dignidade, das pessoas com
deficiência, remetendo ao fim das instituições asilares e a uma nova maneira de
se pensar a vida, a atenção e o cuidado para as pessoas com deficiências
severas.
A
Convenção da ONU foi incorporada à Constituição do Brasil, agora, pelo menos,
estamos muito bem amparados pela legislação, mas, sem pessoas como a senhora a
lei não acontece.
Um
grão de areia no deserto, uma gota de água no oceano podem não fazer diferença,
mas uma pessoa em meio a bilhões de seres humanos faz diferença. A senhora faz
diferença!
Tuca
Munhoz
Fevereiro
de 2012
[i] O texto
completo da Convenção também está no site do MID.